segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

A língua falada por Jesus corre risco de morrer

Qaraqosh, Tel Kepe e Karamlesh são apenas três das cidades iraquianas nas planícies de Nínive capturadas no início de agosto pelo Estado Islâmico, mas elas representam a última grande concentração de falantes do aramaico no mundo. Avançando a nordeste de Mosul, na direção do Curdistão, o exército jihadista agora ocupa o centro antigo do  Iraque cristão. De acordo com funcionários da ONU, cerca de 200 mil cristãos fugiram de suas casas nas planícies de Nínive, na noite de 6 de agosto, com medo de serem expulsos, mortos, ou forçados a se converter pelas forças do Estado Islâmico. Um arcebispo local, Joseph Thomas, descreveu a situação como "catastrófica, uma crise além da imaginação."













200 mil cristãos foram obrigados a fugir de suas casas nas planícies de Nínive
Além da crise humanitária também existe uma emergência cultural e linguística de proporções históricas. A extinção de uma língua em sua terra natal raramente é um processo natural, mas quase sempre reflete as pressões, perseguições e discriminações sofridas pelos seus falantes. O linguista Ken Hale compara a destruição de uma linguagem com "deixar cair uma bomba no Louvre" - padrões inteiros de pensamento, modos de ser e sistemas completos de conhecimento serão perdidos. Se o último falante nativo do aramaico desaparecer daqui a duas gerações a partir de agora, o idioma não terá morrido de causas naturais.

O aramaico abrange uma vasta gama de línguas e dialetos semitas, todas relacionadas, mas muitas vezes incompreensíveis entre si, algumas já extintas ou ameaçadas de extinção. As últimas estimativas disponíveis sobre o número de falantes do aramaico, levantadas a partir de 1990, falam de 500 mil pessoas, das quais cerca da metade vivem no Iraque. Hoje é provável que o número real seja muito menor; os falantes nativos estão espalhados por todo o mundo, e cada vez menos crianças aprendem a  falar a língua. Em nenhum lugar o aramaico tem status de idioma oficial ou é protegido por leis.

É uma queda vertiginosa  para o que antes foi quase um idioma universal. Falado originalmente há mais de 3.000 anos pelos arameus,  nômades que viviam no que hoje é a Síria, o aramaico ganhou destaque como a língua do império assírio. Era o inglês do seu tempo, uma língua franca falada desde a  Índia até o Egito.
                                      Estela do rei Kilamuwa – 850 a.C: a linguagem da inscrição é o aramaico
O aramaico sobreviveu a ascensão e a queda de impérios, florescendo sob o poder da Babilônia e de novo sob o Primeiro Império Persa, no século VI a.C. Milhões o usavam no comércio, na diplomacia e na vida diária. Mesmo depois de Alexandre, o Grande, impor o grego em seus vastos domínios no século IV a.C, o aramaico continuou a se espalhar e a gerar novos dialetos - por exemplo, na antiga Palestina, onde substituiu gradualmente o hebraico. Foi em aramaico que a "escrita na parede", na festa do rei Belsazar, no Livro de Daniel, predisse a queda de Babilônia.

Existem quase três milênios de contínuos registros escritos do aramaico; apenas o chinês, o hebraico e o grego tem um legado igualmente longo. Para muitas religiões, o aramaico tem status de sagrado ou quase sagrado. Presume-se que ele foi a  língua materna de Jesus, que segundo o Evangelho de Mateus, antes de morrer, exclamou na cruz: "Eloì, Eloí, lamá sabactâni" ("Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?"). O aramaico chegou a ser usado no Talmude, nas igrejas cristãs orientais (onde é conhecido como siríaco), e como linguagem ritual e cotidiana dos mandeus, uma minoria étnico-religiosa do Irã e do Iraque.

Séculos depois de Alexandre, o aramaico continuou a se expandir em grande parte do leste do Mediterrâneo e do Oriente Médio. Foi só depois do árabe começar a se espalhar por toda a região no século VII d.C que os falantes do aramaico recuaram para comunidades isoladas nas regiões montanhosas. Nessas comunidades formadas principalmente por judeus e cristãos, no que é hoje o norte do Iraque (incluindo o Curdistão), o noroeste do Irã e o sudeste da Turquia, se desenvolveram os dialetos que os linguistas denominam de neo-aramaico. A maioria dos cristãos que falam aramaico, referem-se a si mesmos como assírios, caldeus ou arameus; muitos chamam sua língua de Sureth.
















Festa de Belsazar, de Rembrandt (1635) capta a cena descrita na Bíblia no capítulo V de Daniel. A mensagem: "Mane, Mane, Tequel, Parsim" está escrita em linhas verticais para baixo a partir do canto superior direito, com "Parsim" tomando duas linhas. (National Gallery, Londres)

Embora marginalizado, o mundo de língua aramaica sobreviveu por mais de um milênio, até o século XX quebrar o que restava dele. Durante a Primeira Guerra Mundial, com o poder otomano dissolvido, os nacionalistas turcos não somente massacraram armênios e gregos, mas também perpetraram o que ficou conhecido  como o genocídio assírio, matando e expulsando a população cristã de língua aramaica do leste da Turquia. A maioria dos sobreviventes fugiram para o Irã e para o Iraque. Algumas décadas mais tarde, em vista do crescente anti-semitismo, a maioria dos judeus que eram falantes nativos do aramaico, partiu para Israel.

O aiatolá Khomeini no Irã,  e Saddam Hussein, no Iraque, acrescentaram novas pressões e perseguições para os cristãos de língua aramaica que ficaram para trás. A diáspora tornou-se uma norma para os assírios, hoje, quase todos  vivem espalhados pelo mundo, a partir de países que fazem fronteira com a antiga zona da língua aramaica, como a Turquia, a Jordânia e Rússia, até as comunidades mais recentes em lugares como Michigan, Califórnia e os subúrbios de Chicago.

Alguns linguistas dividem o que resta do neo-aramaico em quatro grupos: ocidental, central, oriental e neo-mandaico. Até o final do século XX, o grupo central era falado por uma pequena comunidade de alguns milhares de sobreviventes na Turquia. Pelo menos em contextos não-rituais, o neo-mandaico, variedade falada pelos mandeus do Irã e do Iraque, tinha diminuído substancialmente; hoje, apenas algumas centenas de pessoas a falam. Enquanto isso, o neo-aramaico  ocidental se reduzia a um pequeno reduto: a cidade de Maaloula e duas de suas aldeias vizinhas, a nordeste de Damasco. Ali, uma pesquisa de 1996 estimou que  havia 15.000 falantes do idioma, incluindo muitas crianças; em 2006, a Universidade de Damasco abriu uma Academia da Língua Aramaica, apoiada pelo governo do presidente Bashar al-Assad. Havia motivos para se ter esperança.












                                  A foto acima mostra o presidente sírio, Bashar al-Assad, em Maaloula.

Mas então a guerra civil síria começou. Em setembro de 2013, Maaloula caiu para as forças rebeldes, supostamente uma mistura da Frente al-Nusra (um ramo jihadista da Al Qaeda do Iraque) e combatentes do Exército Sírio Livre. Os restantes dos falantes do aramaico fugiram de Damasco ou das aldeias cristãs para o sul, de acordo com o linguista Werner Arnold, que já trabalhou com a comunidade por várias décadas. Forças do governo recapturaram Maaloula em abril de 2014, mas "a maioria das casas estavam destruídas", diz Arnold, e "não havia abastecimento de água e nem eletricidade."

Algumas famílias voltaram a Maaloula em julho, de acordo com Arnold, mas as perspectivas de restaurar a academia parecem remotas. "Eu tive grandes sonhos sobre isso", diz Imad Reihan, um dos professores de aramaico da academia, "mas nesta guerra, no meu país agora, eu não posso me preocupar com o aramaico." Reihan serviu como soldado no Exército sírio nos últimos quatro anos; ele está atualmente perto de Damasco. "Perdemos muito", diz ele sobre sua língua,  "muitas crianças não falam mais aramaico agora. Alguns tentam salvar o idioma em qualquer lugar que estejam, mas não é fácil." Reihan tem primos em Damasco e no Líbano que estão ensinando seus filhos a falar aramaico, mas a dispersão e a assimilação cultural  podem ser forças inelutáveis. "Somente em Maaloula pode o neo-aramaico ocidental sobreviver", diz Arnold - e ainda não está claro se, ou quando, a comunidade poderá retornar para casa.
Assim, até o início de agosto, a melhor esperança para a sobrevivência do aramaico estava no norte do Iraque, no diversificado subgrupo oriental, com o seu maior número de falantes e com suas raízes em comunidades maiores. Contudo, a população cristã do Iraque tem estado em queda livre - de 1,5 milhões em 2003 para uma estimativa de apenas 350 mil a 450 mil atualmente, entretanto as planícies de Nínive haviam sido poupadas do pior. Em janeiro, Bagdá anunciou a  intenção de tornar a região uma província separada, um gesto a favor das aspirações assírias de autonomia.













                               Celebração em um mosteiro ortodoxo sírio em Mosul, no início do século XX.
Mas, em seguida, em junho, Mosul é capturada pelo Estado Islâmico e as forças iraquianas se desintegraram. Em 6 de agosto, o exército curdo bate em retirada, Qaraqosh, a maior cidade cristã do Iraque, com 50.000 habitantes, também cai para os extremistas. A população cristã foge em direção a Erbil, a capital curda.

Apesar dos ataques aéreos dos Estados Unidos, O Estado Islâmico ainda controla a região, agora esvaziada de seus habitantes originais. "A ameaça para a população cristã de língua neo-aramaica do norte do Iraque é muito grande", diz o linguista Geoffrey Khan, acrescentando que a região tem dezenas de aldeias de língua aramaica e que "cada aldeia tem um dialeto um pouco diferente." Todos os estudos de Khan sobre o neo-aramaico falado em Qaraqosh, e estudos similares realizados em cidades vizinhas, podem agora se tornar monumentos culturais mortos, em vez de descrições de comunidades pulsantes de vida. "Uma vez que cada aldeia tem um dialeto diferente", diz Khan, "se os habitantes das aldeias são arrancados e jogados juntos em campos de refugiados ou espalhados em comunidades da diáspora por todo o mundo, os dialetos, inevitavelmente morrem. "A tragédia que se desenrola é uma reminiscência dos terríveis acontecimentos da Primeira Guerra Mundial", acrescenta Khan, que "levou à morte de dezenas de dialetos neo-aramaicos do sudeste da Turquia."

O Projeto de Banco de Dados  do Neo-aramaico Oriental, da Universidade de Cambridge, compilou dados sobre mais de 130 dos dialetos uma vez falados por toda a região, dos quais metade são do Iraque. A maioria deles já não existe ou são falados apenas por pessoas que vivem dispersos pelo mundo.

Após um século de expulsões e perseguições, conseguirá o aramaico sobreviver longe da sua terra natal, nas planícies de Nínive? Entre assimilação e dispersão, os desafios de manter a língua na diáspora será imensa, mesmo que os falantes nativos permaneçam em Erbil.













Uma menina iraquiana enche jarros de água no campo de refugiados Khazer, nos arredores de Erbil, no Curdistão, região do Iraque, em 20 de junho de 2014. Dezenas de milhares de pessoas abandonaram Mosul depois que a cidade foi invadida por militantes do Estado Islâmico do Iraque e Síria.

O neo-aramaico judeu, dos qual várias dezenas de dialetos já foram falados em toda a região, parece que se tornará apenas objeto de fascínio intelectual. Estima-se que 150.000 judeus de ascendência curda, provenientes de famílias de língua aramaica, vivam em Israel atualmente, segundo My Father's Paradise, livro de memórias do autor Ariel Sabar. A sobrevivência dos restantes dos dialetos judeus do neo-aramaico é "precária", diz o pai de Ariel, o linguista Yona Sabar, "devido à assimilação natural dos falantes do aramaico pela sociedade israelense e do falecimento da geração mais velha, que ainda falava e sabia o neo-aramaico do Curdistão. "Vários dos principais dialetos do neo-aramaico judeu já estão extintos, não há nenhum que tenha mais de 10.000 falantes e os jovens que falam a língua agora são extremamente raros." "Por sorte, os judeus deixaram as áreas de conflito há muito tempo", diz Sabar, um dos cronistas mais importantes da língua que outrora ele falara no seu dia a dia.

A não ser que seja rapidamente rechaçada, a presença assassina do Estado Islâmico nas planícies de Nínive pode ser o capítulo final para o aramaico. Globalmente, línguas e culturas estão desaparecendo em um ritmo sem precedentes - em média, um último falante nativo  fluente de uma língua morre a cada três meses - mas o que está acontecendo com o aramaico é muito mais incomum e terrível: a extinção deliberada de uma língua e de uma cultura; tragédia que estamos presenciando em tempo real.






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